Tudo que mais amei.
Tudo queima dentro de mim. Do lado de fora não existem cores.
Quais são as minhas lembranças? Foram 67 horas de viagem voltando pra casa. Qual era nossa lição? Atolados na tristeza daquelas pessoas que perderam tudo. Que perderam não só objetos, mas aqueles que amavam. E quanto a nós? Fomos privados de toda a desgraça. Sabíamos que estava lá, bem do nosso lado, mas não vimos. Não vimos nada. Só que... de alguma maneira sentimos tudo. Aos poucos perdemos pedaços. Aos poucos perdemos o sorriso. Chegamos em casa com a sensação de ter passado por algo terrível. E que nunca iríamos nos recuperar. Essa sensação não era de tristeza, nem raiva, não era nada. Uma interrogação disforme. E pensei que nunca mais seria a mesma, mas os dias passaram e eu me vi sendo egoísta, impaciente, instável. Os dias passaram e aquela tragédia virou apenas uma notícia na televisão. Não entendi. Só conseguia pensar em uma coisa: Foram 67 horas de viagem e os braços de um estranho me confortaram. Ele me protegeu da chuva e do frio, me alimentou, sorriu pra mim, dormiu ao meu lado. E a pessoa que eu amo estava sentada ao meu lado completamente ausente. Dissolvida. Presa em sua própria mente. Ocupada com seus pensamentos. Não viu, não sentiu, não tocou. Todos nós presos naquele ônibus. Todos nós absorvendo aquela energia negativa que encobria o estado inteiro. Todos nós se entrelaçando, confortando uns aos outros. Tentando sorrir quando parecia impossível. Tentando dormir, mas era difícil. E depois que chegamos em casa ilesos... Após uma semana... Sorrir era tão simples. Tão leve. Dormir, passear com os amigos, observar a chuva, ser mesquinho. Era tão natural. Como esquecemos tão rápido? Como? Como esquecemos que poderíamos estar incluídos no total de mortes? Como esquecemos toda a sorte que tivemos? E como esquecemos o quanto nos tornamos unidos durante essas horas de cansaço, agonia, ansiedade, medo? E nos tornamos pessoas tão maduras, e nos entregamos tanto... eu não entendo... Essa sensação foi embora. Desapareceu completamente. É mais um pedaço que perdemos, mas desse não demos falta. Por quê?
Silenciosamente eu recolho meus cacos, meus trapos, meus restos. O que sobrou de mim depois de ser duas vezes rejeitada por você. Desisto. Minha auto-estima se matou. Esfrego a cara no chão e me afogo no seco. Dissolvendo lentamente... pelo ridículo, pela vontade de ter aquilo que não posso. Não te alcanço. E você não me vê. Você nunca me viu. Nem mesmo sentada naquela sarjeta, diante daquele esgoto fétido. Totalmente bêbada, dizendo que te quero. Que te desejo. Eu pari meu coração ali mesmo. Aquelas palavras saíram rasgando. Mas eu disse. Fiz você se sentir amado. Você me fez lixo e me integrou ao esgoto. Disse que não me queria e fitou o vazio. Senti que você queria correr pra longe, bem longe. O mais longe possível de mim e das minhas palavras. Apavorado. Fiquei lá olhando pra você sem mover um músculo da minha face, completamente fodida. E então você simplesmente me deixou. Chorei e me retorci naquele chão imundo. Fui obrigada a engolir de volta o desgraçado que havia acabado de parir bem na sua frente. Engoli. Seco. Sem mastigar. Engoli tudo e fui atrás de você. Ainda pedi que segurasse minha mão. Você segurou, apertou com força e me largou de novo. Em segundos se tornou meu deserto. E nele tenho me arrastado. E as feridas quase curadas voltaram a se encher de pus e sangue. Pois hoje, mais uma vez, você me atirou ao lixo como uma folha de papel usada, rabiscada, sem utilidade. Semanas depois do primeiro episódio resolveu se aproximar de mim. Em mim desenhou, escreveu, desabafou, calculou, fez o que quis. Sorriu pra mim. Brincou comigo. Fez confidências e me aconchegou em seus braços. E então eu me deixei levar e cuspi mais uma vez meu sentimento aos seus pés. Eu disse. Disse que te gostava. Demais. E como resposta você me rasgou ao meio e me largou no fundo da lixeira com as bitucas de cigarro, latinhas de cerveja, papéis de bala e as cartas declarando seu amor à outra. Aquela. Que tem cheiro de morte. Quando ela se aproxima chega a causar náuseas. Mas o sorriso dela é largo e desavergonhado. Ela é mulher. Exuberante, selvagem, livre. É da vida, dos vícios, de curvas bem delineadas. E eu, quem sou? Sou essa sombra. Magra, pálida, inexpressiva. É com ela que a sua voz é suave e seus olhos são serenos. É com ela que seu sorriso é molhado. São as coxas dela que você quer entre as suas. E eu, o que faço? Cato as migalhas que caírem dos momentos felizes que compartilharem? Cheiro os lençóis onde ela deleitou-se com cada detalhe do seu sexo? Não quero as sobras. Quero você por inteiro. Mas de mim você não quer nada. Nem um só fio do meu cabelo roçando a sua pele. Só me resta recolher meus estilhaços... Silenciosamente....